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Category Archives: prosa & verso


“Meu pescoço se enruga.
Imagino que seja
de mover a cabeça
para observar a vida.
E se enrugam as mãos
cansadas dos seus gestos.
E as pálpebras
apertadas no sol.
Só da boca não sei
o sentido das rugas
se dos sorrisos tantos
ou de trancar os dentes
sobre caladas coisas.”

 

Marina Colassanti



 

Cem sonetos de amor    Pablo Neruda

 

 

Não te quero senão porque te quero

E de querer-te a não querer-te chego

E de esperar-te quando não te espero

Passa meu coração do frio ao fogo.

Te quero só porque a ti te quero,

Te odeio sem fim, e odiando-te rogo,

E a medida de meu amor viageiro

É não ver-te e amar-te como um cego.

Talvez consumirá a luz de janeiro

Seu raio cruel, meu coração inteiro,

Roubando-me a chave do sossego.

Nesta história só eu morro

E morrerei de amor porque te quero,

Porque te quero, amor a sangue e fogo. 

 

 

Quantas vezes, amor, te amei sem ver-te e talvez sem lembranças,

Sem reconhecer teu olhar, sem fitar-te, centaura,

Em regiões contrárias, num meio-dia queimante:

Era só o aroma dos cereais que amo.

Talvez te vi, te supus ao passar levantando uma taça

Em Angola, à luz da lua de junho,

Ou era tu a cintura daquela guitarra

Que toquei nas trevas e ressoou como o mar desmedido.

Te amei sem que eu o soubesse, e busquei tua memória.

Nas casas vazias entrei com lanterna a roubar teu retrato.

Mas eu já não sabia como eras. De repente

Enquanto ias comigo te toquei e se deteve minha vida:

Diante de meus olhos estavas, regendo-me, e reinas.

Como fogueira nos bosques o fogo é teu reino.   

 

 

De noite, amada, amarra teu coração ao meu

E que eles no sonho derretem as trevas

Como um duplo tambor combatendo no bosque

Contra o espesso muro das folhas molhadas.

Noturna travessia, brasa negra do sonho

Interceptando o fio das uvas terrestres

Com a pontualidade de um trem descabelado

Que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.

Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro,

À tenacidade que em teu peito bate

Com as asas de um cisne submergido,

Para que às perguntas estreladas do céu

Responda nosso sonho com uma só chave,

Com uma só porta fechada pela sombra.


 
 


 

Florbela Espanca (1894-1930) Ignorada pela preconceituosa crítica do início do século XX, é considerada hoje em dia a mais sublime voz feminina da poesia portuguesa de todos os tempos. Seus sonetos são um ousado diário íntimo.

 

 

Eu

 

Até agora eu não me conhecia,

Julgava que era eu e eu não era

Aquela que em meus versos descrevera

Tão clara como a fonte e como o dia.

Mas que eu não era eu não o sabia

E, mesmo que o soubesse, o não dissera…

Olhos fitos em rútila quimera

Andava atrás de mim… E não me via!

Andava a procurar-me – pobre louca! –

E achei o meu  olhar no teu olhar,

E a minha boca sobre a tua boca!

E esta ânsia de viver, que nada acalma,

É a chama de tua alma a esbrasear

As apagadas cinzas da minha alma!

 

 

Inconstância 

    

Procurei o amor, que me mentiu.

Pedi à vida mais do que ela dava;

Eterna sonhadora edificava

Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,

E tanto beijo a boca me queimava!

E era o sol que os longes deslumbrava

Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a mar e a esquecer…

Atrás do sol dum dia outro a aquecer

As brumas dos atalhos por onde ando…

E este amor que assim me vai fugindo

É igual a outro amor que vai surgindo,

Que há-de partir também… nem eu sei quando…

 

 

Amiga

    

Deixa-me ser a tua amiga, amor;

A tua amiga só, já que não queres

Que pelo teu amor seja a melhor

A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor

O que me importa a mim?! O que quiseres

É sempre um sonho bom! Seja o que for

Bendito seja tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, amor, devagarinho…

Como se os dois nascêssemos irmãos,

Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho…

Beija-me bem!… Que fantasia louca

Guardar assim, fechados, nestas mãos,

Os beijos que sonhei pra minha boca!…

 

 

Eu…    

 

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Seu a irmã do sonho, e desta sorte

Sou a crucificada… a dolorida…

Sombra de névoa tênue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida!…

Sou aquela que passa e ninguém vê…

Sou a que chamam triste sem o ser…

Sou a que chora sem saber por quê…

Sou talvez a visão que alguém sonhou.

Alguém que veio ao mundo pra me ver

E que nunca na vida me encontrou!


 
 


Quando me amei de verdade       Carlos Drummond de Andrade

 

Quando me amei de verdade,
compreendi que em qualquer circunstância, eu estava no lugar certo, na hora certa, no momento exato. E, então, pude relaxar.
Hoje sei que isso tem nome… auto-estima.
Quando me amei de verdade,
pude perceber que a minha angústia, meu sofrimento emocional, não passa de um sinal de que estou indo contra as minhas verdades.
Hoje sei que isso é… autenticidade.
Quando me amei de verdade,
parei de desejar que a minha vida fosse diferente e comecei a ver que tudo o que acontece contribui para o meu crescimento .
Hoje chamo isso de… amadurecimento.
Quando me amei de verdade,
comecei a perceber como é ofensivo tentar forçar alguma situação ou alguém apenas para realizar aquilo que desejo, mesmo sabendo que não é o momento ou a pessoa não está preparada, inclusive eu mesmo.
Hoje sei que o nome disso é… respeito.
Quando me amei de verdade,
comecei a me livrar de tudo que não fosse saudável… pessoas, tarefas, tudo e qualquer coisa que me pusesse para baixo.
De início, minha razão chamou essa atitude de egoísmo.
Hoje sei que se chama… amor-próprio.
Quando me amei de verdade,
deixei de temer meu tempo livre e desisti de fazer grandes planos, abandonei os projetos megalômanos de futuro.
Hoje faço o que acho certo, o que gosto, quando quero e no meu próprio ritmo. Hoje sei que isso é… simplicidade.
Quando me amei de verdade,
desisti de querer ter sempre razão e, com isso, errei muito menos vezes.
Hoje descobri a… humildade.
Quando me amei de verdade,
desisti de ficar revivendo o passado e de me preocupar com o futuro.
Agora, me mantenho no presente, que é onde a vida acontece.
Hoje vivo um dia de cada vez.
Isso é… plenitude.
Quando me amei de verdade,
percebi que a minha mente pode me atormentar e me decepcionar. Mas quando eu a coloco a serviço do meu coração, ela se torna uma grande e valiosa aliada.
Tudo isso é…. saber viver!

 

 

Eterno    Carlos Drummond de Andrade

 

Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo,
mas com tamanha intensidade, que se petrifica,
e nenhuma força jamais o resgata!

Fácil é ouvir a música que toca.
Difícil é ouvir a sua consciência acenando o tempo todo,
mostrando nossas escolhas erradas.

Fácil é ditar regras.
Difícil é segui-las.
Ter a noção exata de nossas próprias vidas,
ao invés de ter noção das vidas dos outros.

Fácil é perguntar o que deseja saber.
Difícil é estar preparado para escutar esta resposta.
Ou querer entender a resposta.

Fácil é chorar ou sorrir quando der vontade.
Difícil é sorrir com vontade de chorar ou chorar de rir, de alegria.

Fácil é dar um beijo.
Difícil é entregar a alma.
Sinceramente, por inteiro.

Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida.
Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro.

Fácil é ocupar um lugar na caderneta telefônica.
Difícil é ocupar o coração de alguém.
Saber que se é realmente amado.

Fácil é sonhar todas as noites.
Difícil é lutar por um sonho.

Fácil é mentir aos quatro ventos o que tentamos camuflar.
Difícil é mentir para o nosso coração.

Fácil é ver o que queremos enxergar.
Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.
Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil.

Fácil é dizer "oi" ou “como vai”?
Difícil é dizer "adeus".
Principalmente quando somos culpados pela partida de alguém de nossas vidas…

Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados.
Difícil é sentir a energia que é transmitida.
Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa.

Fácil é querer ser amado.
Difícil é amar completamente só.
Amar de verdade, sem ter medo de viver, sem ter medo do depois.
Amar e se entregar.
E aprender a dar valor somente a quem te ama.

Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião.
Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer,

antes que a pessoa se vá…

Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias.
Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que já fez muito errado.

Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir.
Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso.
E com confiança no que diz.

Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação.
Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer.
Ou ter coragem pra fazer.

Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado.
Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende.
E é assim que perdemos pessoas especiais.