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Tag Archives: projeto urbano de brasília

As quatro escalas de Brasília

“É assim que, sendo monumental, é também cômoda, eficiente e íntima. É ao mesmo tempo derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional… Brasília, capital aérea e rodoviária; cidade-parque. Sonho arqui-secular do Patriarca.” Lucio Costa, Relatório do Plano Piloto de Brasília

Brasília – Torre de TV – projeto de Lucio Costa. foto beatriz brasil, 2007.

“Se formos buscar nos dicionários o termo ‘escala’, acharemos as mais diferentes definições: hierarquia, régua numerada, tempo que dura em parada um navio ou um avião etc.

É claro que nenhuma dessas possíveis significações da palavra indica o que o Mestre Lucio Costa quis exprimir ao utilizá-la.

Escala é um termo bastante utilizado no jargão dos arquitetos e urbanistas para indicar dimensão, tanto no sentido literal quanto no sentido figurado. Podemos dizer que um projeto foi elaborado em escala 1:20 (ou seja, vinte vezes menor do que o seu tamanho real) assim como podemos falar de um edifício que se adéqua à escala humana (uma construção de proporções aprazíveis para a utilização pelo homem).

O plano de Brasília não é apenas um desenho, é uma concepção de cidade, traduzida, nas palavras de seu criador, por quadro escalas distintas: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica.

A escala monumental está configurada pelo Eixo Monumental, desde a Praça dos Três Poderes até a Praça do Buriti. A escala residencial, que simboliza a nova maneira de viver, própria de Brasília, está representada pelas superquadras das Asas Sul e Norte. A gregária (ou de convívio) situa-se na Plataforma Rodoviária e nos setores de diversões, comerciais, bancários, hoteleiros, médico-hospitalares, de autarquias e de rádio e televisão Norte e Sul. A bucólica, por sua vez, confere a Brasília o caráter de cidade-parque é constituída por todas as áreas livres destinadas à preservação paisagística e ao lazer.

O Eixo Monumental congrega os edifícios que abrigam a alma político-administrativa do país e do governo local. Lá encontra-se o supra-sumo da expressão arquitetônica moderna brasileira, que obedece a um conceito ideal de pureza plástica, onde a intenção de elegância – firme e despojada – está sempre presente. É o ‘cartão de visitas’ da Cidade e configura, por isso, a escala monumental.

Brasília – Eixo Monumental e Esplanada dos Ministérios – foto beatriz brasil

A superquadra, tradução da escala residencial e talvez uma das mais inovadoras e acertadas contribuições atuais para a habitação multifamiliar, representa novo conceito de morar. Estruturalmente, no dizer do próprio Lucio Costa “é um conjunto de edifícios residenciais sobre pilotis (que têm em Brasília, pela primeira vez, presença urbana contínua) ligados entre si pelo fato de terem acesso comum e de ocuparem uma área delimitada – no caso um quadrado de 280 x 280 metros envolto por renques de árvores de copas densas – e com uma população de 2.500 a 3.000 pessoas. O chão é público – os moradores pertencem à quadra, mas a quadra não lhes pertence – e é esta a grande diferença entre superquadra e condomínio. Não há cercas nem guardas e, no entanto, a liberdade de ir e vir não constrange nem inibe o morador de usufruir de seu território, e a visibilidade contínua assegurada pelos pilotis contribui para a segurança”. Na inovadora proposta residencial estão incluídos os comércios locais e s entrequadras, que comportam as atividades de ensino, esporte, recreação e cultura de vizinhança.

A escala gregária, como já foi dito, está representada por todos os setores de convergência da população (setores comercial, bancário, de diversões e de cultura, hoteleiro, médico-hospitalar, de rádio e TV etc.) e tem como foco central a Plataforma Rodoviária, traço de união da metrópole com as demais cidades do Distrito Federal e do entorno.

A escala bucólica permeia as outras três, pois é representada pelos gramados, pelas praças,pelas extensas áreas arborizadas, pelos jardins, pelos espaços de lazer, pela orla do Lago Paranoá, por todos os espaços, enfim, destinados ao deleite, ao descanso e ao devaneio, que dão o caráter de cidade-parque a Brasília e são responsáveis pelos altos índices de qualidade de vida da Capital. Por tal motivo, sua preservação é tão importante quanto a dos monumentos e das demais edificações.

Brasília Revisitada

Depoimento de Lucio Costa, na obra “Lucio Costa, Registro de uma Vivência”

“O Plano Piloto de Brasília não se propôs visões prospectivas de esperanto tecnológico, tampouco resultou de promiscuidade urbanística ou de elaborada e falsa “espontaneidade”. Brasília é a expressão de um determinado conceito urbanístico, tem filiação certa, não é uma cidade bastarda. O seu “facies” é de uma cidade inventada que se assumiu na sua singularidade.

Em 1987 apresentei ao Secretário de Obras Carlos Magalhães e ao Governador José Aparecido de Oliveira um conjunto de recomendações relativas à complementação, preservação, adensamento e expansão urbana de Brasília – “Brasília Revisitada” -, documento que teve origem no trabalho “Brasília 57 – 85”.

Em lugar do texto apresentado, prefiro transcrever aqui parte de um documento escrito em janeiro de 1990, quando Brasília foi tombada, e que resume meu pensamento a respeito da preservação do Plano Piloto:

O mundo está cheio de cidades apenas vivas, que não interessam à Humanidade preservar. Mas no caso raro dessas cidades eleitas há sempre particularidades que precisam manter-se imunes a inovações e modismos, do contrário o que é válido nelas se esvai.

Do estrito e fundamental ponto de vista da composição urbana chegou o momento de definir e de delimitar a futura “volumetria” espacial da cidade, ou seja, a relação entre o verde das áreas a serem mantidas “in natura” (ou cultivadas como campos, arvoredos e bosques) e o branco das áreas a serem edificadas. Chegou o momento, digo mal – o último momento, diria melhor – de ainda ser possível avivar esse confronto e de assim preservar, para sempre, a feição original de Brasília como cidade-parque, o “facies” diferenciador da capital em relação às demais cidades brasileiras.

Por todos os motivos, só mesmo o tombamento será capaz de assegurar às gerações futuras a oportunidade e o direito de conhecer Brasília tal como foi concebida.

Para mim, como urbanista da cidade, importa principalmente o seguinte:

Respeitas as quatro escalas que presidiram a própria concepção da cidade: a simbólica e coletiva, ou Monumental; a doméstica, ou Residencial; a de convívio, ou Gregária; e a de lazer, ou Bucólica, através da manutenção dos gabaritos e taxas de ocupação que as definem.

Respeitar e manter a sua estrutura urbana, que é original, a partir da qual se estabelece a relação entre as quatro escalas.

Respeitar e manter as características originais dos dois eixos e do seu cruzamento, ou seja:

manter o caráter rodoviário inerente à pista central do eixo rodoviário-residencial;

manter non-aedificandi e livre o espaço interno gramado do eixo monumental, da Praça dos Três Poderes até a Torre;

manter a Plataforma Rodoviária como traço de união e ponto de convergência já consolidado do complexo urbano composto pela cidade político-administrativa e pelos improvisados assentamentos satélites;

manter o gabarito deliberadamente baixo do centro do comércio e diversões, sendo as fachadas dos dois conjuntos voltadas para a esplanada recobertas de fora-a-fora por painéis luminosos de propaganda comercial;

preservar e cuidar das pequenas Praças de Pedestres fronteiras ao Teatro e ao Touring, com as fontes, bancos e plantas sempre funcionando e em perfeito estado, tal como o grande conjunto de fontes ao pé da Torre.

Preservar o Eixo Monumental, da Praça dos Três Poderes à Praça Municipal (hoje Praça do Buriti). A Praça dos Três Poderes, complementada pela presença dos Ministérios do Exterior e da Justiça na cabeceira da Esplanada, se constitui, desde o nascedouro, uma serena e digna integração arquitetônico-urbanística, agora enriquecida pela presença dinâmica do Pantheon.

Manter o conceito de superquadra como espaço residencial aberto ao público, em contraposição ao de condomínio fechado; a manutenção da entrada única; do enquadramento arborizado; do gabarito uniforme de seis pavimentos sobre pilotis livres, com os blocos soltos no chão.

Manter a hierarquização do tráfego nas áreas de vizinhança graças à descontinuidade nas vias de acesso às quadras.

Preservar o grande parque público projetado por Burle Marx.

Resgatar e complementar os quarteirões centrais da cidade – o seu “core” – de acordo com as recomendações contidas em “Brasília Revisitada”.

Trata-se, em suma, de respeitar Brasília. De complementar com sensibilidade e lucidez o que ainda lhe falta, preservando o que de válido sobreviveu.

A cidade que primeiro viveu dentro da minha cabeça, se soltou, já não me pertence, pertence ao Brasil